Miguel Louro, um produtor sem medo de errar

Os erros, diz a sabedoria popular, pagam-se caros. Ou talvez não. Pelo menos é o que acontece quando acontecem na casa de Miguel Louro. Na sua adega do belo palacete dos Zagalos, bem perto do centro de Estremoz, há avarias, lapsos, esquecimentos ou contas mal feitas que nem acabam nos lotes dos vinhos mais baratos da casa, nem são despejados no esgoto, nem condenados a fazer aguardente. Pelo contrário, os vinhos nascidos da propensão humana para errar acabam no mercado a preços bem compensadores.

Neste Verão, Miguel Louro apresentará não um, mas quatro vinhos que nasceram de erros e o mínimo que se pode dizer é que há erros que vêm por bem. São vinhos diferentes, cheios de carácter e com uma história para contar. Ou não fossem obra de um homem do vinho que detesta as normas, abomina o politicamente correcto, mantém com inegável prazer a polémica e recusa ver o vinho como um simples produto pensado para agradar ao mercado.

“Temos de tirar partido dos erros. Nas adegas há muitas argoladas. São coisas que acontecem nas adegas todas. Mas as pessoas não arriscam. Pegam nos erros e metem-nos nas cubas para fazer volume e perderem as suas características”, diz Miguel Louro. Com ele, a história é diferente. “Os nossos erros são públicos, são poucos e são caros”, nota.

Porque, para Miguel Louro, as falhas na adega ou na vinha são apenas acontecimentos normais que se corrigem com a recusa verdades absolutas. Um erro, seja uma contaminação com Brettanomyces, levedura que dá ao vinho um aroma confundível com o do suor de cavalo, seja um problema causado por uma avaria numa máquina, pode ser uma oportunidade. “Aprendemos a ciência na universidade. Mas se não fizermos as coisas com cabeça própria, não vamos a lado nenhum. Tenta-se e aprende-se. Se a coisa não me agrada deito-a fora e pronto”, explica.

Bom, não foi seguramente o caso. Os três Erro tintos e o Erro Branco acabaram por corrigir os seus problemas e tornaram-se vinhos condenados a ter sucesso. Porque são diferentes. Porque foram pensados para ser diferentes. Porque Miguel Louro sabe que, num mundo tantas vezes dominado pela padronização, ser diferente é proveitoso. “Há aqui um interesse económico. Mas eu segui também um interesse didáctico. Temos de estar despertos para pensar de forma diferente. Para não reagir sempre da mesma maneira”, diz. Os erros foram por isso um pretexto para que o produtor pudesse uma vez mais exibir o seu culto pela irreverência e pela provocação. E, já agora, o seu talento, que leva alguns críticos e jornalistas a considerar que ele é o autor dos melhores vinhos do Alentejo.

Miguel Louro sempre foi assim, um iconoclasta. Chegou ao mundo do vinho mais ou menos por acaso. Médico dentista de profissão – ainda hoje pratica -, comprou a casa dos Zagalos em 1978 e antes de se dedicar ao vinho foi criador de vacas e ovelhas. “Tive algum sucesso”, diz, mas menos de dez anos depois, muda de vida. O vinho aconteceu por causa de “pessoas amigas ligadas ao mundo dos vinhos”. Entre eles actores de primeiro plano do vinho nacional, como Júlio Bastos ou João Portugal Ramos. Foi “outra experiência”. Que ficaria até hoje, apesar de um começo difícil. “O início correu pessimamente. Eu não percebia nada daquilo”, diz. A primeira plantação, em 1989, teve 70% de falhas porque “os que me fizeram o trabalho eram incompetentes e vigaristas”. O desastre ameaçava as suas ambições. “Podia ter desistido logo. Mas sou teimoso”, diz.

Em 1994 aparece o primeiro Quinta do Mouro e nasce uma nova estrela no Alentejo. Na época, como agora, o que o movia era uma obstinada recusa em ser apenas mais um. “Se as pessoas gostam, gostam; se não gostam, não gostam”, explica Susete Buinho, agrónoma, enóloga e administrativa da empresa. No duelo entre as facções que consideram o vinho um bem alimentar que se deve ajustar ao mercado e às necessidades dos consumidores e as que acreditam que o vinho só faz sentido se for uma criação original, Miguel Louro está neste lado. Sem dúvidas. “Entre o Essência [uma mostra de vinhos que reúne os principais operadores do vinho português] e o Simplesmente [um evento promovido por pequenos produtores independentes, wine freaks e enólogos alternativos] eu sou Simplesmente”, diz. Para ele, Dirk Niepoort, outro inconformado, é o “pai da rapaziada” que segue essa vaga de fundo.

O seu combate é pelos vinhos autênticos, pela transparência e pela liberdade de criação. Irrita-o o mundo do vinho “certificado, regulado, fiscalizado, tudo feito por um estado burocrático com ideia de aperfeiçoar tudo”, no qual, depois, “nada funciona”. Torna-se áspero quando olha à sua volta e pressente os embrulhos do marketing. “Há quem faça muito marketing com os solos e os terroir e a seguir manda vir um camião de Espanha carregado de vinho e continua a mentir. Hoje, o que vende o produto é a imagem”, acusa, para logo depois se destacar da corrente: “Sou um dos poucos a ser realmente vitivinicultor. Só faço as minhas uvas. Os consumidores sabem que se abrirem uma garrafa minha que o vinho é de Estremoz”. Para que não restem dúvidas, “o meu vinho tem de ser irreverente e polémico. Como eu sou”.

Não admira que esta atitude de denúncia e criticismo o tornem pouco simpático para a indústria convencional. O que faz e o que diz “não é para chatear ninguém”, assegura. O problema é que “o marketing ou tem como base a verdade ou é uma vigarice”. Infelizmente, porém, “hoje para se sobreviver tem de se mentir. Mentir falando e mentir escrevendo. Por isso ponho tão pouca informação nos meus rótulos”.

Essa atitude, porém, não basta para explicar o sucesso da Quinta do Mouro. Desde que Marc Squires, jornalista da Wine Advocat, de Robert Parker, considerou que o seu vinho era “Italian old style. Horrible” até o distinguir como o melhor produtor de uma região em forte processo de afirmação, não decorreram muitos anos. “Tinha amigos no sector que diziam que eu era um ignorante e que os vinhos só eram bons porque tinha sorte”, lembra. Talvez. Mas, no vinho como em muitas outras coisas, a sorte procura-se. Mesmo numa vinha numa região privilegiada (Estremoz), onde um lençol freático cria condições únicas para tintos elegantes e distintos, houve que fazer e desfazer muitas coisas até se chegar a um ponto de equilíbrio.

Na vinha logo acima da adega, por exemplo, a qualidade produzida era insatisfatória. As castas eram Touriga Nacional e Trincadeira. Louro decidiu então mudar a condução da vinha. Aumentou a sua altura e abriu-lhes mais os braços. Resultou. Um pouco por todos os seus vinhedos, a experiência é permanente. Miguel Louro aprendeu por si. No terreno. “Se não experimentarmos nunca saberemos o potencial das vinhas”, diz. Para ele, não há cabimento para os saberes acabados. “Um engenheiro diz uma coisa, outro diz outra…”, lamenta, ele que nunca recorreu ao saber dos académicos. “Para quê? Eu sei mais do que eles…”.

Se há alguma coisa que ele sabe hoje, mais de duas décadas após o início da sua aventura, é que “só depois da vinha feita é que se sabe o que o vinho vale”. Quando se planta, pode-se tentar uma previsão do que há-de sair dali. Mas vaga. Porque para lá do solo ou da exposição há variáveis botânicas imprevisíveis de determinar. “Tenho vinhas da mesma casta e do mesmo clone [de videira] a 100 metros de distância e um não presta para nada e o outro é muito bom”, diz Miguel Louro. Ou seja, só a experiência pode determinar se aquele material genético fica bem numa determinada vinha ou se precisa de outras condições para mostrar o que vale. “O terroir marca tudo”, diz o produtor.

No “seu” terroir, não admira, fizeram-se e desfizeram-se ideias feitas sobre o que é o Alentejo. A Trincadeira, uma das castas emblemáticas da região, tem vindo a ser substituída pela Petit Verdot, pela Alicante Bouschet e, curiosamente, pela Aragonez, uma casta que já teve melhores dias entre os produtores alentejanos – no Douro, onde se chama Tinta Roriz, também está longe de ser consensual. Nas suas vinhas há também Alfrocheiro, Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon, Merlot e Petit Syrah. E uma variedade original de Tempranillho, uma casta espanhola da mesma filiação genética da Aragonez.

Com este potencial e com a sua propensão para vestir a pele de bad boy, Miguel Louro produz 9000 garrafas de vinho branco, em geral comprado a produtores da região, e 120 mil garrafas de vinho tinto. Com excepção do Vinha do Mouro, a sua marca de volume, todos os vinhos tintos passam por madeira. O Rótulo Dourado, a categoria mais alta das criações da casa, estagia em barricas novas durante dois anos. E, mesmo assim, quando chega ao mercado exibe contornos de um vinho musculado a exigir tempo para mostrar o que vale.

Este vinho teve edições seguidas entre 2007 e 2011. “Com um conhecimento melhor das vinhas conseguimos tirar mais partido do seu potencial”, diz Susete Buinho. Em 2011 foram produzidos cinco mil garrafas de Rótulo Dourado. “As pessoas sabem que tem muita procura e compram mal chega ao mercado. Esgota rapidamente”, acrescenta a técnica.

É com este lastro que Miguel Louro se pode dar ao luxo de ser o que é sem se preocupar em ser politicamente correcto. Faça o que fizer, diga o que disser, os seus vinhos têm uma legião de adeptos fiel e empenhada na sua causa – e atraída pela sua imagem. Fazer “erros” com a sua assinatura não é nada especial – é apenas mais uma pequena provocação de um criador de vinhos pouco dado a águas mansas. Se os seus Quinta do Mouro fossem fraquinhos, todo o seu discurso e toda a sua atitude perante o negócio ruiria. Como não são, a sua forma de estar até acrescenta charme aos Quinta do Mouro. Que estão, sem dúvida, não apenas entre os melhores vinhos do Alentejo mas também na lista mais estrita dos grandes vinhos tintos nacionais.

Quando Miguel Louro deu conta que, por falta de cuidado e de acompanhamento como mandam as regras, três barricas da vindima de 2013 estavam contaminadas com Brettanomyces, podia fazer o que a maioria dos produtores faz: ou diluir o erro num grande volume, ou destruir as provas de uma fugaz incompetência. Mas não. Miguel Louro optou por um combate para as salvar. “Os meus filhos diziam que aquilo ia contaminar tudo. Eu quero abrir-lhes a cabeça. Quero provar-lhes que não há verdades absolutas”, recorda o produtor.

A maior parte desse lote contaminado com brett era proveniente de uma casta híbrida que um amigo espanhol, um professor universitário, lhe trouxe de Espanha. Uma casta que dá vinhos com o Ph e a acidez muito elevada, “como a do Vinho Verde”. Miguel Louro pegou nesse lote e acrescentou-lhe 50% de Trincadeira, uma casta da qual ele não gosta particularmente – “é uma casta boa para lotar com vinhos mal feitos”. O resultado deste vinho de 2013, da qual nasceram cerca de quatro mil garrafas, é prodigioso. O seu aroma é complexo e vibrante. Os seus taninos e a sua acidez são notáveis. Na boca é um prodígio de intensidade e de frescura.

E o suor de cavalo? Ao contrário da história da sopa de pedra, desapareceu. Foi anulado pela enologia e por uma experiência de tentativa e erro até apresentar a sua actual forma. Uma forma que não deixará indiferentes os que, cansados da padronização, procuram experiências sensoriais diferentes e alternativas. O Erro 3 é um vinho que interpela e desafia.

Mais convencionais e com muito menos arestas, os Erro 1 e 2 nasceram de uma conta mal feita. Quando estavam a engarrafar os lotes do Quinta do Mouro e do Rótulo Dourado (o topo de gama da casa) de 2010, Miguel Louro e Susete Buinho deram conta que havia barricas que tinham ficado esquecidas. O que fazer? Aproveitar o erro. Com essas barricas, Miguel Louro fez dois lotes – o Erro 1, com 1200 garrafas, e o Erro 2 com cerca de 2000. O primeiro é um vinho mais suave, mais bem-comportado. A sua fruta é aberta e generosa. Na boca é muito harmonioso, sedoso e com um final apimentado. Um vinho de outra estirpe. Já o Erro 2 é mais tenso e profundo – é o que mais se ajusta ao perfil dos Quinta do Mouro.

Mas, para que a cartografia dos erros da adega da Quinta do Mouro ficasse completa, tinha de haver um caso com um vinho branco. E que vinho branco. No nariz, parece um vinho já com um punhado de anos de evolução em garrafa. Os seus aromas são delicados, marcados por uma nota química, que sugere um Riesling, e por sintomas de oxidação. A sua acidez é brutal e só a sua estrutura e carácter aromático a conseguem encaixar. Depois vem a surpresa. Não, o vinho não tem anos de garrafa – é da colheita do ano passado. Não os seus aromas mais químicos não resultam de um estágio em barrica nem do recurso à battonage – a fermentação com as borras finas.

O que aconteceu? “O vinho esteve em curtimenta [contacto do mosto com as películas na fermentação] na cuba durante 48 horas. Quando pegaram nas suas massas [compostas essencialmente pelas películas das uvas] e as levaram para a prensa, descobriram que a prensa estava avariada”, conta Miguel Louro. O que fazer? “As massas regressaram à cuba e fizeram a curtimenta completa”, ou seja, até ao final da fermentação. Com este processo, Miguel Louro arriscava-se a criar um vinho com excesso de extracção, desequilibrado, pesado e sem alma. O enólogo, porém, não desistiu. ”Andei para trás e para a frente”, diz. Experimentou. Arriscou. Acrescentou-lhe um lote de Arinto, uma casta que se distingue pela sua acidez e frescura. Resultou. O Erro Branco é um vinho de classe.

Mas, tanto ou mais importante, é um vinho que suscita discussão. “Os Quinta do Mouro já se sabe muito sobre eles. Este branco é bom para a conversa”, diz o produtor. E nessa conversa não há lugar para certezas. “Para o ano, mesmo que queira, não consigo fazer isto. Este vinho passou por tanta trapalhada…”, nota Miguel Louro. “Foi tudo navegação à vista”.